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Carminho: "Quero cantar todas as vozes que tenho"

Carminho: "Quero cantar todas as vozes que tenho"

No primeiro disco que assina após completar 40 anos, enveredando por caminhos exploratórios sem nunca desvirtuar a tradição, Carminho amadurece a abordagem autoral ao fado. Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir, que será editado na próxima sexta-feira, 10 de outubro, é também o resultado de uma perspetiva mais feminista que tem vindo a ganhar dimensão no seu interior.

“Há qualquer coisa que me preocupa cada vez mais em abordar temas sobre as mulheres. E era algo que não me assolava”, partilha com o Observador. “Não é que tenha mudado drasticamente, mas aconteceu desde que fui mãe — e até sou mãe de um rapaz. Sinto mais necessidade de tocar em certos assuntos, sou mais intolerante em relação a certas coisas. Mas aconteceu dentro de mim, até estranhei porque não o fui procurar. Emocionalmente, fiquei bastante mais ligada às histórias das mulheres, das artistas, do papel que tiveram e da possibilidade de eu estar aqui por causa delas. Da dificuldade que ainda existe para que mulheres ocupem lugares que continuam maioritariamente ocupados por homens.”

Há muito que a mulher assume um lugar de estrelato no universo do fado, mas muitas vezes reduzido a uma condição de intérprete, ao “simples” talento de uma grande voz, com um percurso suportado por músicos, compositores, agentes e outros homens como figuras de poder dos bastidores. Nascida e criada no meio — filha de Teresa Siqueira, fadista que geriu a Taverna do Embuçado, em Alfama, Lisboa — desde cedo que Carminho se afirmou como uma enorme promessa desta canção portuguesa que é Património Cultural Imaterial da Humanidade.

[“Canção à Ausente”:]

Após uma primeira tríade de discos tradicionais — Fado (2009), Alma (2012) e Canto (2014) — e embora Carminho sempre tenha escrito canções próprias, o que já evidenciava uma vontade autoral, de construir uma obra própria, terá sido com o álbum de tributo a Tom Jobim, editado em 2016 (e no qual a fadista explorava a saudade com sotaque brasileiro, através da bossa nova), que expandiu horizontes criativos e se propôs, sem pretender operar uma revolução no género, a descobrir e a testar os limites daquilo a que se pode chamar fado.

“Ao ir para o Brasil e ao fazer esse disco, deixei a zona de conforto e houve muitas ideias de que me libertei, e outras que conquistei”, conta. “Houve um amadurecimento enquanto artista e uma necessidade de me procurar, porque percebo cada vez mais que conheço menos do que achava. E não é que eu não me conheça, mas vão surgindo questões e fui procurar respostas. Muitas delas em relação ao fado. Que função é que tem cada instrumento? Que papel é que eu tenho? O que acontece se formos retirando os vários instrumentos que fazem parte do fado?”, questiona.

Raramente conclusivas, as respostas foram chegando nos anos seguintes, à medida que a fadista também ia cimentando uma sólida carreira internacional e começou a produzir os seus próprios álbuns. Ouvimos a guitarra elétrica em Maria (2018), mas também uma canção a capella, onde se posiciona a voz como elemento primordial do fado, depois de despidos todos os restantes instrumentos. Já em Portuguesa (2023), a necessidade de criar uma tapeçaria sonora distinta, com ambiências mais graves, levou-a ao mellotron e à guitarra pedal steel. A desconstrução deu-se igualmente no plano lírico, quando Carminho optou por trocar o género de personagens que habitavam os fados tradicionais que cantava, deixando de perpetuar estereótipos, erguendo uma obra rica em pequenos detalhes que dão conta dos sinais dos tempos, do progresso inevitável que, ainda assim, não tem de colidir de frente com o âmago fadista.

“A caixa que a Beatriz da Conceição me deixou é um tesouro. Tinha várias coisas que falavam sobre ela, sobre o processo dela, ela escrevia à mão tudo o que cantava. Há um processo da palavra, da repetição, e aquilo ensinou-me um monte de coisas. Havia fotografias, cartas, e havia este poema inédito, que nem sequer estava registado.”

O próprio título deste novo disco desafia a ideia fatalista tantas vezes cantada e romantizada no fado. Eu Vou de Morrer de Amor ou Resistir é um poema obscuro de Carlos Barrela, que Carminho descobriu há uma década na caixa de objetos que a fadista Beatriz da Conceição — uma das suas grandes referências, que foi uma mestra para si — lhe deixou no momento da morte.

“A caixa que a Beatriz da Conceição me deixou é um tesouro. Tinha várias coisas que falavam sobre ela, sobre o processo dela, ela escrevia à mão tudo o que cantava. Há um processo da palavra, da repetição, e aquilo ensinou-me um monte de coisas. Havia fotografias, cartas, e havia este poema inédito, que nem sequer estava registado.”

Esteve, como um embrião num longo processo de gestação, à espera que Carminho lhe desse vida e encontrasse o momento oportuno para o elevar desta forma. “Fui completamente abalroada por essa frase. Porque, de alguma maneira, ironiza ou dá um passo em frente nesta temática que já está muito trabalhada pelo fado, do fatalismo. E aquilo de que gosto na construção de um repertório não é só na música, também é na parte lírica, ao trazer novas temáticas”, explica.

A capa de "Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir", de Carminho, que é editado a 10 de outubro

Carminho encara o fado como uma “língua viva”, que existe para “ser falada”, na qual “não está tudo dito”. “Há muitos que queriam que tivesse acabado com o [Alfredo] Marceneiro, outros que queriam que tivesse acabado na Amália [Rodrigues] e que nunca mais ninguém tivesse feito nada. Felizmente, não é assim. O fado é a linguagem, não é o discurso. Portanto, quando surge este poema e esta frase, é algo que faz sentido. Isto é aquilo que eu quero dizer. A ideia de que uma mulher no fado já não morre de amor — ou, pelo menos, pode não morrer de amor, porque pode resistir. Mas também está lá o ‘eu vou morrer de amor’, porque é bonito e é inevitável a pessoa sofrer. Ninguém está a dizer que agora somos invencíveis e que não sofremos. A fatalidade do amor também é intemporal, a pessoa sente-se a morrer. Mas depois há a possibilidade de não morrer. E este discurso também nos leva ao empoderamento, a semântica também nos empodera. Então era um fado que queria no meu repertório e que resume muito as ideias do disco.”

Gravado nos Estúdios Namouche, em Lisboa, Carminho olha para Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir como uma “continuidade bastante óbvia” em relação aos dois discos anteriores. “É uma clara continuação dessas perguntas e da busca por respostas. Talvez não esteja muito interessada nas respostas, mas sim no processo para tentar encontrá-las. Mesmo que no fim elas não cheguem, acho que é bonito entregarmos o processo. A prática do fado continua a ser uma problemática que me interessa: a ideia de que instrumentos fazem parte do fado, que regiões sónicas é que habita.”

Na prática, a fadista vai recolhendo repertório — poemas e composições suas e de outros — e depois vai experimentando, em conjunto com os músicos que a acompanham ao vivo (João Pimenta Gomes, Pedro Geraldes, André Dias, Tiago Maia, Flávio César Cardoso), quais são os arranjos e os instrumentos certos para cada segmento. “Fazemos muitas experiências e depois há um momento em que sinto: vamos começar a marcar tudo, a formalizar estas ideias. É importante ter os instrumentos pré-definidos, traçar um plano e depois começar a investigar dentro desses limites do fado.”

Se em Maria se debateu muito em torno da “função dos instrumentos” — “qual é o propósito de cada um e para onde é que se dirigem, sendo que são todos muito centrais, recortam muito a performance, com bastante ataque e protagonismo” — em Portuguesa procurava “qualquer coisa que trouxesse pano de fundo”. Foi então que surgiu o mellotron, um teclado eletromecânico, que agora foi usado por João Pimenta Gomes — ligado à música experimental, ele que é também o companheiro de Carminho — para registar a voz da fadista e a usar como notas nas teclas. Daí o resultado que podemos escutar no single Balada do País que Dói, com as vozes dobradas, entre o canto original e as notas tocadas por João Pimenta Gomes no mellotron.

"Uma das canções, Pela Minha Voz, foi escrita pela Joana Espadinha e tem essa ideia de que somos como condutores de várias vozes que se sobrepõem a outras vozes. Porque fomos ouvindo muitas vozes ao longo da vida, deixaram a sua influência, e de repente atravessam uma pessoa que as traz todas e passa para outra."

“Ele já utilizava as minhas vozes em peças com sintetizadores modulares. Porque não gravamos as minhas vozes no mellotron? O disco começa com voz, exatamente pela ideia de que a voz é o fado. Na minha opinião, é o elemento principal, com a raiz mais profunda. E isto também veio responder a questões mais poéticas do disco, a ideia das várias mulheres que estão dentro de uma mulher. Que muitas vezes discutem, são ambíguas, não têm certezas, dizem coisas contraditórias. Querem sair além da personagem principal. E queria trazer profundidade, com personagens que habitam diferentes planos.”

Instrumentos raros como o Ondes Martenot e o Cristal Baschet juntaram-se aos arranjos. O próprio vocoder é usado, subtilmente, como um recurso estético. A fadista compara muito esta “plasticidade” que emprega no fado à “fluidez” das artes plásticas, como se estivesse a moldar com as mãos uma peça sonora que, com os limites circunstanciais e auto-impostos daquilo que se propõe a fazer, ganha caráter nas nuances próprias das ferramentas que usa, na forma como as utiliza, como, por exemplo, quando a guitarra portuguesa assume um papel de base em vez de ser um instrumento de solo, com o protagonismo tradicional. “A música não experimental parece não ter lugar, à partida, para essa fluidez. Mas acho que todos os artistas a podem ter. O primeiro tema abre com a minha voz, mas tocada por outra pessoa. Ou seja, o ataque é totalmente diferente, ela está desconstruída. Mas é o mesmo timbre. Então, há uma ilusão. Estou a ouvir aquilo ou não estou a ouvir?”

Estes processos simultâneos de “desconstrução e construção” são o combustível criativo para alguém como Carminho, que os vê como a principal fonte de “prazer” na composição, e que acabam por espelhar outro tipo de transformações conceptuais.

[“Balada do País que Dói”:]

“Uma guitarra elétrica pode ter muitas abordagens. Até podemos pensar que a guitarra portuguesa não, porque já tem uma função [tradicional], mas vamos dar-lhe outra. Vamos sugerir. Vamos desconstruir uma coisa e construir outra. É um diálogo que também fala sobre aceitação, que diz que não há lugares fixos na história. Também fala sobre as mulheres e os homens. As mulheres não têm que estar sempre atrás dos homens. Toda a gente pode ter o seu lugar. Esta abordagem aos instrumentos sugere essa ideia de equidade ou de convivência fraterna.”

Carminho cita “mulheres fortes e inspiradoras” como Wendy Carlos, Annette Peacock e Laurie Anderson — o que ajuda a traçar um retrato do imaginário que tem para o seu fado, num equilíbrio delicado entre manter a essência mas sem o receio de a levar numa viagem marcada por momentos de vanguarda, por pormenores que disparam noutras direções.

“Este é um disco que fala muito sobre mulheres, também sobre as que me inspiraram. Estas pessoas, que trabalharam estes instrumentos e pela forma como se apresentaram como artistas na sua época, mas também, por razões diferentes, a minha mãe, a Beatriz da Conceição, a Maria Teresa de Noronha. Uma das canções, Pela Minha Voz, foi escrita pela Joana Espadinha e tem essa ideia de que somos como condutores de várias vozes que se sobrepõem a outras vozes. Porque fomos ouvindo muitas vozes ao longo da vida, deixaram a sua influência, e de repente atravessam uma pessoa que as traz todas e passa para outra. É um processo contínuo, uma fluidez de ideias, sonhos, histórias, experiências. Ou então só de sons. E isso também é retratado através destes vários instrumentos que parecem sempre uma voz.”

"Há um lugar mais íntimo, só que posso só não ser eu. E o que mais me importa é que o disco é um processo, não é o fim. E cada um também leva o disco para si. Portanto, pouco importa se estes textos são sobre mim ou não. Porque o que interessa também é o processo de construção que vai criar no outro.”

Em Eu Vou de Morrer de Amor ou Resistir, Carminho canta dois poemas de Ana Hatherly, que escrevia textos que, no entender da fadista, “já vêm habitados com música e ritmo”. Para um deles, Carminho convidou a própria Laurie Anderson a participar na canção. Já existia uma base instrumental de guitarra portuguesa e a voz da fadista, mas Carminho deixou em aberto qual seria o papel de Anderson, abrindo espaço para essa experimentação, incitando a criatividade da norte-americana de 78 anos, sem quaisquer indicações.

“Aquela música poderia ser tudo, ela trabalha de várias formas e eu disse para ela fazer o que quisesse, porque eu queria essa liberdade. E ela devolve-me a canção com aquelas vozes. Poderia ser qualquer coisa, mas eram vozes sussurradas, faladas… Tem tudo a ver com este disco. E ela trabalha a voz de uma forma muito plástica, e generosamente disse-me que as podia cortar, manipular, ou seja, mais um instrumento ao serviço da canção. E isso vai-me permitir partir essa voz, separar as palavras, tocar a voz da Laurie Anderson ao vivo. Inspirou-me muito pela sua generosidade, com uma pujança que eu gostaria um dia de ter, é mesmo um colosso. Então está o João a tocar as minhas vozes, eu a tocar as vozes da Laurie Anderson… Há uma ideia de que a voz já não é a minha, nem a dela. É uma construção. E isso é muito bonito.”

Cita ainda a rainha do fado, Amália Rodrigues, de quem canta Sofrendo da Alma para este álbum. “É uma mulher magistral que também inspira este disco e que está aqui noutro plano, desconstruindo o seu papel como intérprete e cantora, para aparecer como letrista. E acho que, ninguém diria, eu própria fiquei surpreendida quando descobri, mas, no total dos poemas que cantou, a maioria eram dela mesmo. É curioso e inspirador: escreve, faz o teu repertório, escreve o que pensas e o que viste, não tenhas medo.”

Olhando para o alinhamento e para a viagem entre a primeira e a última faixa do disco, a artista adianta que o percurso se inicia com a ideia de “uma dor mais lata, mais universal, de comunidade” — com a intenção de validar a dor dos outros, de sublinhar que nem sempre a cura vem da resolução concreta dos problemas, mas antes de haver espaço para as pessoas se expressarem, para que sejam escutadas e validadas, para que se possa “empoderar” nesse sentido.

“Este é um disco que fala muito sobre mulheres, também sobre as que me inspiraram", diz Carminho

MARIANA MALTONI

Depois, o álbum “afunila para uma dor mais pessoal e íntima”. Para concluir a derradeira faixa, Dia Cinzento, que conta com piano tocado por Mário Laginha, a última palavra que ouvimos em todo o álbum é “perdão”.

“Passa por uma dor que parece definitiva, que parece o fim. ‘Se o futuro está esquecido, eu não me quero lembrar contigo se te esqueceste do futuro’. Acabou o futuro. E se não há futuro, não há nada. É uma ideia de morte. Mas não, por causa do ‘ou resistir’. Então, o tema continua e passa por vários lugares que podem ser a resposta para que, no fim, haja a capacidade, apesar da dor, de haver um perdão. Porque todos nós podemos perdoar. E todos nós podemos ser perdoados. Também é um ato de coragem deixar-se ser perdoado. E, portanto, afinal, o dia não acabou. ‘Não digas agora que acabou’. Eu até te posso dizer isso, mas o futuro não morreu. ‘Porque é coisa para o futuro.’ Só o perdão é que dá futuro a uma coisa que parecia acabada.”

Neste que é o seu sétimo disco de longa duração, Carminho conta que, numa fase anterior, só cantava letras que fossem próximas das suas experiências pessoais. “Eu só cantava o que tinha a ver comigo”, recorda. Hoje, permite-se a liberdade de explorar “muitas outras temáticas e lugares”. “Até porque descubro mais pessoas em mim, mais vozes que tenho, e há outras que eu ainda nem sei que aqui estão, mas que me apetece cantar, quero cantá-las todas. Portanto, há aí um lugar mais íntimo, só que posso só não ser eu. E o que mais me importa é que o disco é um processo, não é o fim. E cada um também leva o disco para si. Portanto, pouco importa se estes textos são sobre mim ou não. Porque o que interessa também é o processo de construção que vai criar no outro.”

“Um concerto ao ar livre não é o mesmo que um concerto num teatro, é preciso estarmos em harmonia e o público está com determinada energia e mentalidade. Mas também quero ir a festivais, quero cantar e dançar. É o meu papel e as pessoas merecem que eu faça essas adaptações. Mas também existe um cuidado, uma imagem específica, e quero levar o álbum a todos os lugares."

Em digressão pelas Américas até ao final do ano, Carminho tem vários concertos marcados nos Estados Unidos da América, no Canadá e no Brasil, mas também vai passar pelo México, Panamá, Peru, Colômbia, Chile, Argentina e Uruguai.

“Vai ser um alinhamento mesmo muito focado no disco. Gosto de cantar os discos”, revela, apesar de também sublinhar a importância da adaptação, consoante a natureza do espetáculo, desde o local ao horário, passando pelo público. “Um concerto ao ar livre não é o mesmo que um concerto num teatro, é preciso estarmos em harmonia e o público está com determinada energia e mentalidade. Mas também quero ir a festivais, quero cantar e dançar. É o meu papel e as pessoas merecem que eu faça essas adaptações. Mas também existe um cuidado, uma imagem específica, e quero levar o álbum a todos os lugares. Não é que as pessoas só o encontrem quando estão nas perfeitas condições. Isso também faz crescer novos discos, novas ideias.”

observador

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